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segunda-feira, 1 de agosto de 2016

VIOLINOS NÃO ENVELHECEM

Eu a escrevi faz muito tempo - uma estória de amor. Quem a leu, eu sei, não se esqueceu.
Por razão do dito pela Adélia: "o que a memória ama fica eterno". História de amor não inventada, acontecida, tão comovente quanto Romeu e Julieta, Abelardo e Heloísa. O que fiz foi só registrar o acontecido.

Preciso contá-la de novo, para benefício daqueles que não a leram pela primeira vez, e a fim de acrescentar um final novo, inesperado, acontecido depois.
A testemunha que me relatou o sucedido foi sobrinho, médico-músico, pessoa querida e bonita.

Atrasou-se para um compromisso na minha casa, chegou três horas depois, explicando que havia ido ao velório de um tio de 81 anos de idade que morrera de amor. Parece que seu velho corpo não suportara a intensidade da felicidade tardia, e os seus músculos não deram conta do jovem que, repentinamente, dele se apossara.

O amor surgira no tempo em que ele é mais puro: a adolescência.
Mas naqueles tempos havia uma outra Aids, chamada tuberculose, que se comprazia em atacar as pessoas bonitas, os artistas, os apaixonados - esses eram os grupos de risco.
Pois ela, a tuberculose, invejosa da felicidade dos dois, alojou-se nos pulmões do moço, que teve de ir em busca de ar puro, no alto das montanhas, sanatório, tal como Thomas Mann descreve em seu livro -A montanha mágica.

Quem ia para tais lugares despedia-se com um "adeus", um olhar de "nunca mais".
Na melhor das hipóteses, muitos anos haveriam de passar antes do reencontro.
Imagino o sofrimento da jovem dividida: o corpo, naquela casa, a alma por longe terra!
Na vida daquela menina, que surda, perdida guerra...(Cecília Meireles).
Valeram mais os prudentes conselhos da mãe e do pai: não trocar o certo pelo duvidoso.

Vale mais um negociante vivo que um tuberculoso morto. E aconteceu com ela o que aconteceu com a Firmina Dazza, que de longe e às escondidas namorava o Fiorentino Ariza, na estória de Gabriel García Márquez, Amor nos tempos do cólera, que foi obrigada pelo pai a se casar com o doutor Urbino: não se troca um médico por um escriturário. Casou e com ele ficou até que, depois de 51 anos, veio a libertação...

Ela casou. Ele casou. Nunca mais se viram. Quando ele tinha 76 anos, ficou viúvo. Quando ela tinha 76 anos (ele tinha 79), ela ficou viúva. E ficou sabendo que ele estava vivo. A curiosidade e a saudade foram fortes demais. Foi procurá-lo. Encontraram-se. E, de repente, eram namorados adolescentes de novo.

Resolveram casar-se. Os filhos protestaram. Eles, os filhos, todos os filhos, não suportam a idéia de que os velhos também têm sexo. Especialmente os pais. Pais velhos devem ser fofos, devem saber contar estórias, devem tomar conta dos netos. Mas velho apaixonado é coisa ridícula. Não combina. Mais detalhes no livro da Simone de Beauvoir sobre a velhice. E houve também aquela estória do programa Você decide: o velho pai, infeliz a vida inteira com a esposa, encontra uma mulher por quem se apaixona.

A pergunta: ele deve ou não deve deixar a esposa para viver o novo amor? Você decide... A decisão do público - os filhos, evidentemente: "Não, ele não deve viver o novo amor..."
Os filhos sempre decidem contra o amor dos pais.

Mas, na nossa estória, os dois velhos deram uma solene banana para os filhos e foram viver juntos em Poços de Caldas. Viveram um ano de amor maravilhoso, e ele até começou a escrever poesia e voltou a tocar  o violino que ficara por mais de 50 anos sobre um guarda roupa, porque a esposa não gostava de música de violino. Confessou ao sobrinho: "Se Deus me der dois anos de vida com esta mulher, minha vida terá valido a pena..." Bem que Deus quis. Mas o corpo não deixou. Morreu de amor, como temia o Vinícius.

Achei a estória tão bonita que a transformei numa crônica a que dei um título inspirado nas Sagradas Escrituras: "..e os velhos se apaixonarão de novo".
Começa aqui o novo final para a estória.
Passaram-se semanas. Eram dez horas. Eu estava trabalhando no meu escritório. O telefone tocou.
Voz aveludada de mulher do outro lado.

- É o professor Rubem Alves?
- Sim, respondi secamente. Eu sou sempre seco ao telefone.
- Quero agradecer a belíssima crônica que o senhor escreveu com o título: " ...e os velhos se apaixonarão de novo". O senhor já deve ter adivinhado quem está falando....
- Não, respondi. Por vezes eu sou meio burro. Aí ela se revelou:
- Sou a viúva.

Foi o início de uma deliciosa conversa de mais de 40 minutos, interurbano, em que ela contou detalhes que eu desconhecia. O medo que ela teve quando ele resolveu mandar consertar o violino! Ela temia que os dedos dele já estivessem duros demais...

Ah! Que metáfora fascinante para um psicanalista sensível! Sim, sim! Nem os violinos ficam velhos demais, nem os dedos ficam impotentes para produzir música! E aí foi contando, contando, revivendo, sorrindo, chorando - tanta alegria, tanta saudade, uma eternidade inteira num grão de areia... Ao terminar, ela fez esta observação maravilhosa:

-Pois é, professor. Na idade da gente, a gente não mexe muito com sexo. A gente vive de ternura!

Aqui termina a lição do Evangelho.
(Rubem Alves)

                                            (imagem google)


15 comentários:

  1. Sensaci8onal! Maravilhoso e uma ternura de ler.... Me encantei! bjs, chica

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  2. Olá Sonia
    Que bela história e que com um desdobramento mágico, quem imaginaria?
    bjs

    http://eueminhasplantinhas.blogspot.com.br/

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  3. Oi Soninha quero agradecer sua visita lá em casa. Puxa que história linda... me emocionei. Salve o Mestre Rubem Alves psicanalista sensível e adorador de ipês-amarelos. Obrigada... vou salvar essa história para nunca esquecê-la. Abençoada seja!!! Com carinho Rê.

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  4. Adorei o desenvolvimento :) Lembro-me de a ter lido a primeira vez. Mas agora, tem ainda mais força, com a rebeldia tardia de lutar pelo amor. Linda de mais, torna ainda mais romântico o Amor.
    Toda a gente tem direito ao amor, seja qual for a idade. Beijinhos e obrigada por mais essa partilha inspiradora!
    Catarina H.
    https://ecologicaquem.blogspot.pt

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  5. Sonia, que emoção! Delicadeza, verdade, uma lágrima escorreu! Mas não é uma história para se ler uma vez, nem duas, é para uma vida, para momentos. Há descobertas a serem feitas... as linhas levam a atalhos, próprios pessoais... só posso te agradecer.
    Deixei resposta para você lá no meu blog, mas a foto é nossa, pode voar com ela, que eu vou junto, voar com as tuas belezas.
    Um beijo amore!

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  6. Muito linda a história e eu não a conhecia! Obrigada pela partilha! Bjks Tetê

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  7. Uma história maravilhosa e tocante, que desconhecia...
    Adorei esta partilha encantadora!...
    Sempre tão enriquecedor passar por aqui!...
    Deixando um beijo imenso, enquanto me ausento por algumas semanas, contando tornar às publicações, lá para o final do mês...
    Um feliz Agosto, para todo o mundo aí!
    E até breve!
    Ana

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  8. Uma história em que Rubem Alves soube colocar toda a emoção e humanidade possíveis. Achei maravilhosa.
    Beijos.

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  9. História maravilhosa,podemos sim viver de ternura!!!!!

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  10. História maravilhosa,podemos sim viver de ternura!!!!!

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  11. Uma história muito bela, humana
    e a poesia do sentir sem idade,
    o sentir genuíno tem um caminho
    com o tempo próprio, o amor é
    assim!...
    Adorei a releitura desta crônica!!
    Abraço, querida.

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